📝 Resenha: Afirma Pereira - Antonio Tabucchi
💥 Olar, Bookstans de plantão, tudo bem com vocês? Enquanto não sai a série de resenhas de distopias que eu prometi fazer lá no insta do blog (quem não seguiu ainda, vai lá rapidão 👉@bookstanobcecada), vou postar essa resenha desse livro que li no início do mês e inclusive ocupou boa parte do meu tempo, porque utilizei ele para fazer uma resenha acadêmica (vou utilizar aqui alguns trechos dela). Recebi Afirma Pereira - Um testemunho da TAG Livros (clube de assinatura de livros do qual sou associada) na caixinha do mês de agosto.
📝 Considerações iniciais à parte, Afirma Pereira é uma obra do escritor italiano Antonio Tabucchi que foi lançada em 1994 na Itália. Escrito em formato de testemunho, o livro é intimamente ligado aos acontecimentos políticos passados, fazendo uma releitura da ditadura salazarista em Portugal, dando destaque à opressão perpetuada pelo regime autoritário com fortes componentes de personalismo católico conservador, este qual vigorou de 1933 a 1974. Sendo assim, a trama é ambientada em Lisboa, Portugal, no ano de 1938. Como principal recurso narrativo, o autor utiliza recorrentemente o verbo de elocução “afirma” junto ao nome do nosso protagonista, Pereira. Então, diversas vezes nos deparamos na obra com frases e parágrafos que iniciam com: “afirma”, “afirma Pereira”, “Pereira afirma”, recurso apresentado de cara no título. Sendo assim, é escrito como uma espécie de depoimento, como se Pereira estivesse descrevendo suas ações para a polícia, num inquérito.
📖 O livro conta a história de Pereira, um jornalista de meia idade, viúvo, católico, acima do peso, que adora limonadas e omeletes de ervas haha, cardíaco e solitário, que edita a página cultural do Lisboa, um pequeno jornal vespertino, tendo sido responsável pela página policial de outro periódico por mais de 30 anos. Sem qualquer interesse pela política, Pereira vive alheio aos acontecimentos que o rondam e é constantemente atormentado pela morte. Seja por acontecimentos de sua vida pessoal, como a morte de sua mulher e os problemas que tem devido a obesidade (em função disso ele recebe diversos alertas do seu médico), ou seja em decorrência de seu próprio trabalho no qual ele faz traduções de textos de franceses do século XIX, publica efemérides e antecipa necrológios de escritores famosos que podem vir a óbito.
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Pág. 13. |
📖 Vive uma vida automatizada, fazendo sempre as mesmas coisas e indo aos mesmos lugares. A rotina do jornalista é profundamente alterada quando ele conhece Monteiro Rossi e Marta, sua namorada, este qual foi contratado para escrever os necrológios antecipados do jornal. Através de uma narrativa por vezes irônica e bastante aprofundada na mente angustiada de Pereira, o livro acompanha mudanças que ocorrem em sua vida após ser confrontado pelos dois jovens, firmemente engajados na luta contra o salazarismo e demais regimes autoritários que permeavam a Europa.
🍋✨ Sobre a edição, eu só tenho a dizer que ela é incrível, assim como todas as edições da TAG! 💯 Eles tem um capricho de dar gosto, essa foi uma edição em parceria com a editora Estação Liberdade e o projeto gráfico desse livro é lindíssimo, a qualidade é impecável, a arte ficou maravilhosa e essas linhas que tem nas capas possuem uma textura meio áspera em alto relevo que dão o toque final pra deixar ele perfeito. A gramatura é papel Pólen bold 90g/m², então tipo vocês podem imaginar que as folhas são bem grossas e a leitura nesse papel é maravilhosa, eles utilizaram uma fonte azul escuro que não incomoda em nada, deixou mais bonito ainda. As letras são pequenas, mas não me incomodo com isso. Por fim, o livro conta com 160 páginas divididas em capítulos em texto corrido, de forma que até mesmo nos diálogos são dessa forma, sem o uso do travessão (–).
📖 Dito isso, vamos lá. O livro se inicia com Pereira pensando sobre a morte, porque ele é meio obcecado com a ideia, embora não acredite na ressurreição da carne, daí ele está lendo uma revista de literatura que tem uma sessão de filosofia, na qual encontra um artigo que trata sobre o que? exatamente, sobre a morte. O artigo trás uma reflexão acerca da morte, escrita por Monteiro Rossi. Muito interessado no assunto, o jornalista liga para o autor e decide convidá-lo a fazer os necrológios antecipados para a página cultural do jornal em que trabalha. Ao conhecê-lo, Pereira se depara com um jovem de vinte e poucos anos, que nada pensa sobre a morte, afirmando está mais interessado em viver. Ainda assim, contrata-o, pagando de seu próprio bolso para fazer os necrológios. Contudo, ao receber os escritos, descreve-os como “impublicáveis” e “inutilizáveis”, afirmando que os elogios fúnebres de Rossi são demasiadamente irresponsáveis, apologéticos e subversivos, mesmo que o próprio Pereira não simpatizasse com o regime. Ainda assim, Pereira guarda os necrológios e paga do próprio bolso a Monteiro Rossi.
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Pág. 35. |
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Pág. 35. |
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Págs. 35 e 36. |
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Pág. 43. |
📖 Durante seus encontros, ora com Monteiro Rossi, ora com Marta, Pereira se vê, no desenrolar da trama, envolto em questionamentos de cunho pessoal e político, ficando cada vez mais em crise consigo mesmo. Ele começa a se perguntar se os jovens, de fato, não estariam certos. O conflito ideológico de Pereira com ambos personagens supracitados é o ponto de partida para as mudanças que começam a ocorrer na mente do jornalista. Estas são endossadas pela simpatia do Lisboa com a ditadura; a censura oficial que afeta diretamente seu trabalho; os confrontos de ideias que passa a ter com seu chefe, diretor do periódico; uma conversa com uma judia que o incita a agir em face à situação apresentada; e pelo contato com um médico de uma clínica talassoterápica , Doutor Cardoso.
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Pág. 92. |
🙋💭 Confesso que a leitura desse livro foi um pouco arrastada, eu demorei três dias para terminar ele, sendo que um livro desse tamanho eu terminaria normalmente em um dia, mas realmente a narrativa é um pouco maçante, isso decorre do fato de que a vida de Pereira não é lá essas coisas. Imagino que depois dessa minha abordagem da obra vocês tenham percebido que Pereira, de fato, é bastante solitário e na vida dele não acontecia nada fora do normal antes de Monteiro Rossi e Marta entrarem nela. Quer dizer, o cara conversa com o retrato da sua mulher morta, então…. é, ele não tem muitos amigos. Pois então... sim, eu remanchei (em nordestinês quer dizer que eu procrastinei) bastante para terminar a leitura, pois como eu falei, o livro é muito parado, a ação acontece apenas nas páginas finais e nelas você fica ansioso para saber o que vai acontecer. Outro motivo, é que a obra sai um pouco da minha zona de conforto, do que eu estou acostumada a ler, e eu também não estava muito numa vibe de querer ler algo sério e precisava ler o livro. Isso não significa que estou dizendo que a obra é ruim nem nada do tipo, não gosto de dizer que um livro é ruim só porque eu não estava no momento de ler ele, ou por não ser uma leitura que não estou acostumada, pois isso seria ignorar todo um trabalho do autor com a obra e toda a importância que ela porventura teve, o que de fato é o caso aqui (vou deixar um PS explicando).
🙋💭 Por outro lado, o interessante do livro é observar como o Pereira vai se transformando ao longo da narrativa. De início, aparece como um protagonista ignorante quanto ao contexto social em que vive, apesar de ser um jornalista, sendo, inclusive, confrontado por um padre amigo seu numa conversa logo nas primeiras páginas “afinal em que mundo vive, você que trabalha num jornal?, ouça Pereira, vá se informar”. Meio pro fim, torna-se um cara que tem interesse e busca saber das notícias e novidades que permeiam sua realidade e que quer fazer algo quanto a ela. Aqui, percebemos que a manipulação da informação em um governo autoritário é uma poderosa ferramenta de opressão, pois essa passagem mostra que a estratégia para se manter informado é de ir a locais com grande circulação de pessoas ou buscar tais informações em veículos internacionais de comunicação. Ou seja, há muita dificuldade de se obter informações por meios oficiais, já que todas as notícias importantes em regimes autoritários, como o salazarista, são controladas pelo governo, dificultando a população de saber exatamente o que está acontecendo.
🙋💭 Assim, é intrigante acompanhar o quão Pereira vai mudando ao longo da leitura, é perceptível a cada diálogo e pensamento o quanto a mentalidade dele vai se alterando e ele vai começando a se transformar em alguém que questiona e age. Certamente, Monteiro Rossi e Marta são essenciais para essa mudança, que tem seu estopim nas páginas finais do livro, através de um acontecimento que eu não vou contar qual é, porque seria uma baita spoiler haha. A forma como o livro é narrado e como Tabucchi descreve o personagem, as ações dele, os sentimentos, as angústias, realmente faz com que você perceba e entenda claramente os conflitos da mente de Pereira e como cada situação o influencia, fazendo-o questionar-se cada vez mais, e agir de uma forma diferente, mesmo que de início inconscientemente. Parece até um romance psicológico, porque foca bastante nessas questões, mas, pelo que pesquisei e pelo pouco que entendo do assunto, acho que não chega a ser, mais a frente digo a vocês o gênero dele 😉.
🙋💭 Se gostarem desse tipo de livro, através desta obra vão poder observar, sob os olhos inicialmente enevoados de Pereira, os impactos causados pelo regime ditatorial em curso. Em síntese, os principais destaques vão para o autoritarismo do regime salazarista por meio da censura institucional imposta à imprensa, uma das primeiras vítimas de governos ditatoriais, e que resulta também na autocensura efetuada pelos próprios comunicadores que têm medo das consequências de divulgar informações; até à repressão policial, à perseguição política e à tortura amplamente deflagrada contra àqueles considerados subversivos.
📝 O livro é um romance histórico, sendo assim, recomendo ele e considero muito bom se você quer fazer uma leitura reflexiva e séria, se quer refletir acerca da nossa realidade democrática, sobretudo em momentos de crise de legitimidade como o atual, ou mesmo se quiser ter um vislumbre de como atua um governo autoritário, quais estratégias são utilizadas, os impactos na população, etc. Já se você procura uma obra leve, para passar o seu tempo e se divertir, eu não indico tanto esse livro, porque aqui o papo é mais sério, e embora porventura você solte um risinho com ele, não vai ser algo recorrente, pois não é o foco narrativo. Para mim, a obra cumpriu muito bem com o papel que eu designei para ela com a leitura, que, como falei anteriormente, era fazer uma resenha literária acadêmica. Nesta, fiz justamente o que recomendei para vocês, refleti acerca de diversas questões relacionadas à Democracia e liberdades.
📢 Por fim, Afirma Pereira é uma obra que pode ser transplantada para diversos momentos da história, tendo dito Tabucchi que não a escreveu para se referir especificamente à Itália (havia boatos na época que o livro era uma crítica à direita católica e conservadora que tomava espaço no país). Nela, somos confrontados por vários aspectos que permeiam um governo autoritário e conhecemos um protagonista que altera profundamente seus ideais após situações em que foi exposto, decidindo, enfim, tomar um posicionamento contra o regime imposto. Monteiro Rossi e Marta aparecem na sua vida e o fazem questionar sua existência, entrar em conflito interno, agir de um modo diferente e ter pensamentos que jamais tinha cogitado. Tudo isso resulta, por fim, na transformação de um protagonista que jamais se dedicou a ser herói de nada, mas que, após um longo processo de maturação, decide não se calar diante da opressão e dar voz à revolta, à indignação, às injustiças e às arbitrariedades causadas por ela. É uma obra que nos põe para refletir e questionar nossa própria realidade democrática, também maculada por um regime ditatorial extremamente repressivo, que ainda faz eco nos tempos atuais. Enfim… é isso galera, espero que tenham gostado da resenha e continuem acompanhando o blog. Xero e até a próxima 😉.
📌PS: Sobre o que eu falei acerca da importância das obras e não gostar de dizer que um livro é ruim 👉 A obra foi a mais importante da carreira de Tabucchi, teve uma ótima recepção pelo público e a temática era muito relevante para eles, recebeu adaptação para o cinema e rendeu a ele diversos prêmios nacionais e internacionais. Portanto, é sim uma obra que eu acredito que outras pessoas deveriam ler e acho que traz temas super importante que merecem nossa atenção e reflexão, porque eu adoro uma farofa, mas nem sempre vou viver só de ler elas haha.
📌PS²: Efemérides são uma espécie de diário, agenda ou livro que trás acontecimentos cotidianos registrados e relacionados ou, ainda, livro que traz o que aconteceu em diferentes anos, no mesmo dia do ano. | A Talassoterapia – thalassa, ‘mar’, e terapia, ‘cura’, é um tratamento terapêutico que faz utilização, das propriedades da água do mar, das algas, das lamas e outros elementos marinhos. Visam ajudar nos processos de desintoxicação da pele além de relaxar e aumentar a imunidade. Por sugestão médica, Pereira vai à clínica talassoterápica que disponibiliza tratamento para cardíacos.
📌PS³: No início do livro tem uma nota do Tabucchi que nos dá um norte acerca do uso do verbo “afirma”. Ele diz que o Pereira, como alma que “vagava no espaço do éter”, apareceu para ele no momento que antecede a hora de dormir querendo contar sua história e ele percebeu que Pereira precisava dele para “se narrar, para descrever uma escolha, um tormento, uma vida”, e isso aliado à imaginação do Tabucchi deram vida ao personagem. Essa nota, entretanto, apesar de nos dar uma luz, ainda assim não é suficiente para tirar a pulga atrás da orelha que fica sobre o uso do verbo. Creio eu que foi algo intencional, para ficarmos refletindo e conjecturando sobre.
Referências
BARBOSA, Marinalva. Imprensa e ditadura: do esquecimento à lembrança em imagens sínteses. Revista Brasileira de História da Mídia (RBHM) - v.3, n.2, jul./2014 - dez./2014 - ISSN 2238-5126.
CAMASSA, José Bento de Oliveira. Romance de uma (auto)afirmação: o íntimo e o político em Afirma Pereira, de Antonio Tabucchi. Avaliação de Curso ( História da Cultura I) - Universidade de São Paulo. Fora do Expediente - Primeiros escritos, São Paulo, n. 8. 11 p. 2017.
MENESES. Filipe Ribeiro de (2013), Comentário “Salazar e
o poder: A arte de saber durar”. Análise Social, 208, xlviii
(3.º), pp. 739-744. ISSN online 2182-2999.
NATUSCH, Igor. Cinco décadas de censura. Prefácio Afirma
Pereira - TAG Livros, Porto Alegre, p. 12-15, agosto de 2020.
NECCHI, Vitor. Nenhuma noite deve alcançar o infinito.
Posfácio Afirma Pereira - TAG Livros, Porto Alegre,
p. 14-17, agosto de 2020.
SANTANA, Ana Lúcia. Talassoterapia. Disponível
em: https://www.infoescola.com/medicina-alternativa
/talassoterapia. Acesso em: 14 de setembro de 2020.
Eu li este livro e me identifiquei muito com o protagonista. Talvez este seja um sinal para pensar sobre o que acontece ao meu redor e sair da minha zona de conforto. Sua resenha, como de praxe, está incrível! 😍👏🏼
ResponderExcluirTalvez todos nós tenhamos um pouquinho de Pereira na gente né amg haha muito obrigadaa 😍🥰🥰
ExcluirDaniel em poucas linhas me deixou muito curiosa sobre o livro. E assim, assinei a tag inéditos de setembro/2020. Mas sua resenha ficou impecável, continuei mais interessada na leitura, até na história. Gosto que você vai atrás de outras referências, coloca páginas para o leitor apreciar (diria que uma instigação deliciosa e que mostra um pouco do estilo de escrita do autor). Não sei se existe resenha completa, mas se existe, eu diria que é o seu, pq acho impecável, foge do simples minimalista que não consegue, talvez, contemplar a obra como ela é. E você aborda de vários ângulos, não deixando um pingo de sede para leitores ou para quem tem ânsia de voltar a ler. É um prato cheio e rico (digo em variedade, não em questão econômica) que leitores se sentem saciados.
ExcluirVocê não imagina como fico feliz lendo isso, Eduarda. Muito obrigada mesmo 😍, tento fugir justamente dessas resenhas mastigadas e dar aos leitores e panorama mais amplo sobre as obras, justamente por isso optei pelo blog, porque aqui consigo fazer isso da melhor forma. Espero que leia o livro e goste dele também.
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